sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Os métodos céticos

Isabel Pires


Os estudiosos do ceticismo filosófico reconhecem Pirro de Élida (360-270 a. C.) como seu fundador, ou seja, aquele que primeiramente sistematizou as bases do pensamento cético, criando um método próprio. Após a morte de Pirro, o método cético foi apropriado por vários pensadores antigos, de diferentes maneiras e com propósitos variados, como os dialéticos Enesidemo e Agripa, os acadêmicos Arcesilau e Carnéades, e Sexto Empírico, que compilou o pensamento cético antigo e utilizou a “bateria cética” como arma de combate ao pensamento dogmático. Aqui, se propõe uma visão geral da forma como cada um destes pensadores apresenta o ceticismo.

O pirronismo

Pirro, que também foi sacerdote de Élis, pautava o seu ceticismo por uma conduta de vida prática, baseada nos costumes e nas tradições, que tinha por objetivo alcançar a “tranquilidade intelectual” diante das divergências de opiniões. O método criado por Pirro visava obter essa tranquilidade intelectual, que para ele equivalia à “felicidade” buscada pela Ética. O pirronismo fundamenta-se na ideia de que “uma coisa não é mais que outra”, e assim não há como saber, sem provas irrefutáveis e sem uma busca meticulosa, onde está a Verdade. Assim, todas as coisas se equivalem, visto que não podem ser discerníveis nem pelos sentidos nem pela razão, já que ambos são falhos e limitados; sendo os sentidos e a razão não confiáveis, o melhor é abster-se de emitir opinião; a recusa em se pronunciar conduz ao estado de imperturbabilidade, o qual leva à indiferença. O método pirrônico se resume nos seguintes passos: 1) zétesis (investigação); 2) diafonia (conflito de opiniões); 3) isostenia (equipolência de teorias); 4) époké (suspensão do juízo); 5) afasia (ausência de fala); 6) ataraxia (tranquilidade); 7) adiaforia (indiferença) (in: BERNARDO, 2000, p. 135-6).
Pirro não deixou obras escritas – à exceção de um único poema dedicado a Alexandre, o Grande, a quem acompanhou em expedições de conquista pela Ásia –, mas suas doutrinas tornaram-se conhecidas graças a seu discípulo Timon de Filionte, que o teria retratado, em versos satíricos, como exemplo vivo do modo de vida cético, e, no século III, por Diógenes Laércio e Sexto Empírico, que compilaram o seu pensamento.

O ceticismo acadêmico

Sob a liderança de Arcesilau (315-240 a. C.) e depois, com Carneades (214-129 a. C.), a Academia, herdeira do pensamento platônico, passa a viver uma nova fase, conhecida como Nova Academia, em que os neo-acadêmicos rejeitam o dogmatismo rígido dos platônicos, pois consideram que não apenas “ainda não se tinha descoberto a verdade, como também era impossível se chegar a ela” (VERDAN, 1998, p. 23). Segundo Diógenes Laertius (2008, p. 118), Arcesilau "foi o primeiro a suspender o juízo por causa da contradição de argumentos opostos. Foi também o primeiro a defender ambos os lados de uma questão, e o primeiro a modificar o sistema deixado por Platão e a torná-lo mais adequado à controvérsia mediante perguntas e respostas". Carneades combateu com afinco os estóicos, particularmente Crisipo. Deixou apenas cartas escritas, sendo sua obra compilada por seus discípulos.



Adotando os princípios céticos e utilizando a dialética como método de obtenção da époké, a suspensão do juízo cética, os neo-acadêmicos também defendem a proposição de dois critérios, com o objetivo de orientar, mesmo provisoriamente, as ações cotidianas: a razoabilidade, que invoca a favor de uma ação um conjunto mínimo de razões coerentes, e a probabilidade, segundo a qual uma coisa poderia ser mais provável que outra (in: BERNARDO, 2000, p. 136).

O ceticismo dialético

Com Enesidemo e Agripa, que viveram por volta de 80 a. C. e 130 da era cristã, o ceticismo é marcado por um retorno radical à époké pirrônica, que havia sido deixada em segundo plano pelo probabilismo dos neo-acadêmicos. Enesidemo e Agripa elaboraram métodos próprios, acrescentando assim sua visão particular ao método original de Pirro. Enesidemo elaborou os Dez Modos e os Oito Modos do ceticismo, enquanto Agripa acrescentou aos Modos de Enesidemo os seus Cinco Tropos. Os Dez Modos de Enesidemo constituem um questionamento sistemático e radical do conhecimento filosófico. Por sua vez, os Oito Modos são dirigidos especificamente contra os filósofos dogmáticos e tencionam combater a ideia de causalidade, expondo os seus impasses.
Os Cinco Tropos de Agripa são considerados pelos estudiosos do ceticismo como uma das principais armas de combate ao dogmatismo, pois, ao mesmo tempo em que resumem os pontos mais importantes do ceticismo, evidenciando a fragilidade do conhecimento empírico, revelam por outro lado “a incapacidade da própria razão em estabelecer qualquer verdade” (VERDAN, 1998, p. 34).
Apresentamos a seguir, de forma resumida, esses “modos do ceticismo”, conforme compilados por Sexto Empírico (1993):

Os Dez Modos de Enesidemo

Modo 1:
Diferenças entre os animais. As distinções entre os animais geram diferentes formas de percepção do mundo exterior, não se podendo dizer que as impressões sensíveis dos seres humanos, em comparação com as dos outros animais, sejam capazes de desvendar a real natureza de um objeto.
Modo 2: Diferenças entre os seres humanos. Se, em razão das diferenças individuais, as coisas afetam os homens de modos diferentes em diferentes momentos, não há porque se crer que uma dada percepção revele melhor que outra a real natureza das coisas.
Modo 3: Diversidade dos sentidos num único indivíduo. A percepção, num mesmo indivíduo, está sujeita a variações que afetam a apreensão dos fenômenos. Além disto, cada órgão dos sentidos apreende os fenômenos de forma diferente, não se podendo saber qual deles teria a capacidade de revelar as verdadeiras propriedades dos objetos.
Modo 4: Relatividade das circunstâncias. A percepção é alterada pelas circunstâncias que afetam o sujeito, tais como saúde, doença, sono, vigília, idade, movimento, repouso, lucidez, embriaguez, amor, ódio.
Modo 5: Circunstâncias do objeto. Este modo seria o equivalente, para os objetos, das circunstâncias que afetam os sujeitos. Assim, de acordo com posições, intervalos e lugares, os mesmos objetos podem ser percebidos de várias maneiras pelos que os observam.
Modo 6: Combinações. Os objetos não afetariam os sentidos humanos por si mesmos, mas sempre em combinação com outros fatores.
Modo 7: Quantidades. A quantidade e a composição dos objetos influenciam a percepção sobre eles, tornando impossível que a natureza objetiva do mundo seja revelada por eles.
Modo 8: Relatividade. O conhecimento é relativo tanto ao sujeito como às próprias coisas (ou circunstâncias) que são percebidas.
Modo 9: Frequência e raridade. Os observadores estabelecem graus diferentes de importância aos fenômenos, segundo a ocorrência deles. Assim, um terremoto impressionaria mais pela sua pouca ocorrência, do que pelos danos realmente causados. Em contrapartida, o fenômeno das secas e/ou geadas, em alguns lugares, impressionam menos, embora também causem muitos danos.
Modo 10: Costumes. Os costumes, as leis e a moral são variáveis de um povo para outro, o que leva à necessidade de se considerar uma equipolência entre eles. Assim, devido à multiplicidade cultural, deve haver uma relatividade cultural das regras de conduta dos indivíduos e grupos, leis, hábitos, lendas, etc. que formam o patrimônio cultural de um povo.

Os Oito Modos de Enesidemo

Modo 1: Princípio da não-confirmação. Uma vez que a etiologia em geral lida com coisas não-evidentes, ela não pode ser confirmada por evidências incontroversas derivadas do que aparece.
Modo 2: Princípio da pluralidade causal ou da monocausalidade arbitrária. Com frequência, quando há amplo espaço para atribuir ao objeto sob investigação uma variedade de causas, alguns dogmáticos o fazem em apenas um sentido.
Modo 3: Princípio da incompatibilidade formal. Para eventos ordenados, os dogmáticos atribuem causas que não exibem ordem alguma.
Modo 4: Princípio da falácia analógica. Ao perceberem o modo pelo qual o que aparece ocorre, os dogmáticos afirmam que também podem apreender de que modo o que não aparece ocorre. Embora o que não aparece possa se realizar de modo similar ao que aparece, é possível que ele assim não se realize, mas sim de forma própria e peculiar.
Modo 5: Princípio da idiossincrasia. Os dogmáticos em geral atribuem causas de acordo com suas hipóteses particulares, e não de acordo com métodos comumente pactuados.
Modo 6: Princípio da seletividade. Frequentemente os dogmáticos admitem apenas os fatos que podem ser explicados por suas próprias teorias, e descartam fatos que com elas colidam, embora possuam igual probabilidade.
Modo 7: Princípio da inconsistência. Com frequência os dogmáticos atribuem causas que conflitam não apenas com o que aparece, mas com suas próprias hipóteses.
Modo 8: Princípio da incerteza hiperbólica. Quando há idêntica dúvida a respeito de coisas aparentes assemelhadas e coisas sob investigação, eles baseiam sua doutrina a respeito de coisas duvidosas em coisas igualmente duvidosas.

Os Cinco Tropos de Agripa

Tropo 1: Modo da discordância. Trata do conflito interminável (diaphonía) que ocorre tanto entre filósofos como entre os homens comuns, a respeito de qualquer assunto.
Tropo 2: Regressão ao infinito. Uma evidência oferecida como prova de uma afirmação remete à necessidade de ser ela mesma provada, e assim por diante, até o infinito.
Tropo 3: Relatividade. Nada é apreendido em si mesmo e por si mesmo, mas sempre em relação a circunstâncias que afetam tanto os sujeitos como os objetos de conhecimento. O que resulta que nada pode ser conhecido em absoluto.
Tropo 4: Hipóteses. Na tentativa de escapar da regressão ao infinito, os dogmáticos tentam colocar no início da argumentação algo que não demande prova, ou seja, uma hipótese. No entanto, os céticos podem recusar este princípio, uma vez que uma hipótese pode ser contraditada por qualquer outra proposição, visto não haver provas para ela.
Tropo 5: Círculo vicioso ou reciprocidade. O dialelo ou círculo vicioso surge quando a prova que confirmaria uma proposição se deriva da própria proposição. Isto é, quando o dogmático tenta justificar sua afirmação pelas consequências, que são, porém, justificadas pela própria afirmação.

O ceticismo de Sexto Empírico

Sexto Empírico, médico grego adepto da corrente empirista,1 sistematiza, por volta de 220 a 230 da era cristã, o que se conhece do ceticismo filosófico até então. Suas obras Hipotiposis pirronicas e Adversus mathematicus apresentam o método pirrônico e os Modos e Tropos de Enesidemo e de Agripa, sendo através delas que esses métodos chegaram até os dias atuais. Para Sexto, os sistemas filosóficos são de três tipos principais: dogmático, acadêmico e cético. Os dogmáticos, como Aristóteles, Epicuro, os estóicos e outros, “disseram haver encontrado a verdade”; os acadêmicos, seguidores de Clitômaco e Carnéades, “declararam que isto não era possível”, enquanto os céticos “continuam investigando” (EMPIRICO, 1993, p. 51).
Sexto também coloca em xeque as três disciplinas tradicionais da filosofia – a Lógica, a Metafísica e a Ética. O ataque de Sexto Empírico à Lógica consiste num questionamento do “critério de verdade”, que, à luz do ceticismo, surge como parcial e subjetivo. Sexto argumenta que, para o estabelecimento de uma regra absoluta capaz de distinguir o verdadeiro do falso, é necessário se definir antes um critério prévio. Mas como estabelecer qualquer critério prévio, sem cair num círculo vicioso? No exame da Metafísica, Sexto Empírico se vale do método dialético, apresentando de modo imparcial a tese e sua antítese. Assim, após informar sobre a discordância dos filósofos acerca da questão da divindade, expõe Sexto primeiramente os argumentos a favor da existência divina, para, logo em seguida, apresentar a argumentação dos ateus, sem se decidir por nenhum dos lados. Para ele, simplesmente, “considerando a igual força dos argumentos, pode ser que os deuses existam ou não” (in VERDAN, op. cit., p. 48). A crítica de Sexto à Ética é dirigida à dupla finalidade desta: distinguir racionalmente o Bem do Mal e, a partir disso, ensinar aos homens o caminho da felicidade. Sexto Empírico ressalta o caráter relativo dos conceitos de Bem e de Mal, visto que tanto filósofos como homens comuns discordam sobre o que é bom e o que é mal. Os céticos argumentam que, mesmo que tal discernimento fosse possível, ele ainda não seria capaz de assegurar a felicidade, pois o homem em busca dela sofreria constantes perturbações, na tentativa de separar as coisas boas das más. Para solucionar o impasse, a recomendação cética é a suspensão do juízo, utilizada como método diante dos dois lados opostos que se apresentam – o Bem e o Mal –, e a adesão à moral e aos costumes vigentes. Com isso, os céticos asseguram a obtenção da ataraxia, a serenidade.
A fim de rebater as críticas feitas aos céticos de que a sua doutrina possui um objetivo – a busca da “preciosa ataraxia”, a serenidade de espírito, contradizendo deste modo os princípios nos quais se fundamenta, Sexto Empírico recorre a uma imagem, conhecida entre os estudiosos como o “apólogo de Apeles”:

Com o cético ocorre o que se conta do pintor Apeles. Dizem, com efeito, que, pintando um cavalo e querendo reproduzir na pintura a espuma do animal, tinha tão pouco êxito que, desistindo, atirou contra o quadro a esponja que usava para limpar os pincéis. Esta, ao tocar na pintura, plasmou nela a forma da espuma do cavalo. De idêntico modo, também os céticos esperam recobrar a serenidade de espírito avaliando a disparidade dos fenômenos e das considerações teóricas, mas, não sendo capazes de tal empreitada, suspendem seus juízos e, ao assim procederem, alcançam como que por acaso a serenidade de espírito, da mesma forma como a sombra acompanha o corpo. (EMPIRICO, 1993, p. 61-2)

Para os céticos, a ataraxia é, sempre, uma consequência da prática do ceticismo, e não um fim em si, e deve ser conseguida pela não consideração de questões indecidíveis, que levam ao conflito de opiniões e à perturbação do espírito. O ceticismo de Sexto Empírico possui um caráter marcadamente terapêutico, funcionando como remédio contra o “mal do dogmatismo” e das “perturbações filosóficas”.
O “grande historiador do ceticismo antigo”, como Jean-Paul Dumont (s/d) denomina Sexto Empírico, avulta na história do ceticismo grego, mas é com ele também que se encerra um ciclo. Após sua morte, o ceticismo cai num período de nebulosidade que dura, aproximadamente, dez séculos, ressurgindo apenas com os nominalistas do fim do período medieval, dos quais se destaca o frade franciscano inglês Guilherme de Occam (1270 a 1346, provavelmente). Com a publicação, em latim, das obras de Sexto Empírico em 1562 e 1569, no contexto renascentista francês, o ceticismo novamente viria à tona, encontrando, em Montaigne, notadamente no ensaio A apologia de Raymond Sebond, a sua expressão mais acabada.

Bibliografia

BERNARDO, Gustavo. “O nominalismo medieval na base da fenomenologia moderna”. In: MALEVAL, Maria do Amparo T. (org.). Atualizações da Idade Média. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000, p. 133-166.

DUMONT, Jean-Paul. Ceticismo. Trad. Jaimir Conte. Disponível em http://planeta.terra.com.br/arte/dubitoergosum. Acesso em maio 2008.

EMPIRICO, Sexto. Esbozos pirrónicos. Introducción, traducción y notas de Antonio G. Cao e Teresa M. Diego. Madrid: Editorial Gredos, 1993.

VERDAN, André. O ceticismo filosófico. Trad. Jaimir Conte. Florianópolis: UFSC, 1998.

NOTA








1Teoria médica que, a partir do século III, se opunha às concepções médicas tradicionais, que procuravam as “causas profundas” das doenças nos “quatro humores fundamentais” e em “fluidos vitais”. Ao contrário dos “doutrinadores”, que estabeleciam prováveis causas para as doenças, com hipóteses por vezes absurdas, os médicos empíricos consideravam este esforço vão, e defendiam que, o melhor a fazer, era se ater aos sinais aparentes das moléstias, adaptando a estes sinais uma terapêutica possível de curá-los.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Michel de Montaigne - Apologie de Raimond Sebond - a segunda objeção

[Legendas: caracteres em branco: texto-base de 1580; caracteres em azul: acréscimos de 1580-1588; caracteres em vermelho: acréscimos manuscritos do exemplar de Bordeaux]

Mas eu me vou, sem mesmo percebê-lo, avançando já na segunda objeção, a qual me propus responder por Sebond: alguns dizem que seus argumentos são fracos e incapazes de demonstrar o que ele gostaria, e se vangloriam de facilmente os abalar. Falta atacar esses adversários um pouco mais rudemente, pois eles são mais perigosos e mais pérfidos que os primeiros.

Interpretamos naturalmente o que dizem os outros em função de nossas próprias opiniões, e para um ateu, todos os escritos têm qualquer coisa a ver com o ateísmo, pois ele infecta com seu próprio veneno a matéria inocente. Essas gentes possuem uma opinião formada que lhes faz achar insossos os argumentos de Sebond. De resto, parece que lhes damos a faca e o queijo, e toda a liberdade de combater nossa religião por armas puramente humanas, ao passo que eles não ousariam atacá-la em sua plena nobreza de autoridade e de soberania.O meio que utilizo para combater este frenesi, aquele que me parece o mais apropriado, é o de amassar e calcar aos pés o orgulho e a arrogância humanos. Falta fazer sentir a essas gentes a inanidade, a vaidade e a nulidade do homem, arrancar-lhes das mãos as fracas armas da razão, fazê-los curvar a cabeça e morder o pó sob o peso da autoridade e do respeito da majestade divina. Pois é a ela, e a ela somente que pertencem o conhecimento e a sabedoria: somente ela pode avaliar qualquer coisa de si mesma, e a estima que temos de nós, nós a dissimulamos.

Ou gar ea phronein ho Theos mega allon ae heaouton. [Heródoto, VII, X]
(Pois Deus não permite que outro que não ele sinta orgulho.)

Cuidemos de abater esta presunção, primeiro fundamento da tirania do espírito maligno: Deus superbis resistit; humilibus autem dat gratiam. [São Pedro, Epístolas, I, V, 5] (Deus resiste aos orgulhosos e concede sua graça aos humildes.) A inteligência está em todos os Deuses, diz Platão, e em pouquíssimos homens.

Ora, é entretanto de muito consolo ao homem cristão ver nossas ferramentas mortais e caducas tão propriamente combinadas à nossa fé santa e divina que, ainda que sejam empregadas em assuntos mortais e caducos por natureza, nisto elas não se mostrem mais justamente apropriadas nem com mais força. Vejamos então se o homem tem em seu poder outras razões mais fortes que as de Sebond, e até mesmo se chega a alguma certeza pelo argumento e pelo discurso.


quarta-feira, 19 de março de 2008

Sexto Empírico - Hypotiposis pirronianas - Livro II


I

SE AO CÉTICO É DADO EXAMINAR AQUILO QUE SE EXPÕE ENTRE OS DOGMÁTICOS


E posto que chegamos ao estudo contra os dogmáticos, revisemos, de modo conciso e esquemático, cada uma das partes da assim chamada Filosofia, respondendo antes aos que continuadamente murmuram que o cético não está capacitado nem para examinar nem para entender a fundo aquilo que entre eles se dogmatiza.
Dizem, com efeito, que o cético apreende ou não aquilo que foi dito pelos dogmáticos.
Mas, se o apreende, como duvidaria daquilo mesmo que afirma apreender?
Enquanto que, se não o apreende, tampouco saberá discorrer sobre aquilo que não apreendeu. Pois, do mesmo modo que se alguém não sabe, por exemplo, o que significa “todo triângulo possui três ângulos equivalentes a dois ângulo retos”, ou o teorema “entre os dois trópicos”, então não pode debater nada sobre isto. Do mesmo modo, quem não conhece cada uma das coisas que se expõem entre os dogmáticos, tampouco poderá questioná-los acerca daquilo que não conhece.
Portanto, o cético não poderia, em nenhum caso, criticar aquilo que se expõe entre os dogmáticos.
Ora, a quem assim argumenta, responda-nos: em que sentido o termo “apreender” está sendo utilizado? Se no sentido de entender sem comprometer-se de fato acerca da realidade daquilo sobre o que se discute, ou se no sentido de entender, admitindo assim a realidade daquilo sobre o que se discute.
Pois, se dizem que apreender significa assentir com o pensamento a uma representação mental que capta a realidade, então: tendo em conta que essa representação apreensível é algo que se dá na realidade, impressa e estampada segundo o próprio objeto real, e de tal forma que não surgiria daquilo que não existe, tampouco eles pretenderão – seguramente que não – poder examinar aquilo que não apreendem.
Por exemplo – e a propósito –, quando o estóico questiona o epicuro quanto a este dizer que “a essência das coisas é (infinitamente) divisível” ou que “a Divindade não se ocupa dos assuntos do Mundo”, ou que “o prazer é bom”, ele apreendeu ou não o que foi dito? Porque, se apreendeu, faz voar pelos ares o Pórtico,[1] ao dizer que essas coisas são reais. E se não o apreendeu, nada pode dizer contra elas.
E coisas semelhantes devem argumentar-se contra os que se guiam por outros sistemas filosóficos, cada vez que desejam examinar algo em que crêem aqueles que possuem opinião diferente das suas. De forma que nada podem questionar-se uns com outros.
E mais, se não quisera cair em incongruências, uma vez admitido que não se pode analisar aquilo que não se tenha apreendido dessa forma, toda sua filosofia dogmática se desmoronará, por assim dizer; enquanto que a cética permanecerá firmemente estabelecida.
Com efeito, aquele que se pronuncia e dogmatiza sobre uma coisa não manifesta, terá de dizer se se pronuncia sobre ela havendo-a apreendido ou não. Mas se o faz sem havê-la apreendido, será indigno de crédito. E se apreendeu-a, ou bem dirá que a apreendeu porque se lhe ofereceu diretamente, por si mesma e claramente, ou por meio de alguma averiguação ou investigação.
Mas se disser que essa coisa não manifesta se lhe ofereceu e foi apreendida por si mesma, sem buscá-la e de modo claro, nesse caso já não seria uma coisa não manifesta, mas sim manifesta para todos por igual, admitida sem controvérsias. Mas, para cada coisa não manifesta, há uma controvérsia interminável entre eles. Por conseguinte, não seria o dogmático aquele que – quando insiste e se pronuncia sobre a sua realidade objetiva – haveria de apreender o não manifesto como se lhe oferecesse por si mesmo e claramente.
E se disser que foi por meio de alguma investigação, neste caso, como podia estar capacitado para investigar essa coisa, antes de – segundo a hipótese prévia – havê-la apreendido? Pois, se a investigação exige que se apreenda previamente e com exatidão aquilo que será investigado, e que somente assim se investigue, então: dado que, por sua vez, a apreensão da coisa investigada precisa, ela mesma, ser investigada a fundo, resulta-lhes impossível – de acordo com o tropo do círculo vicioso – tanto investigar sobre o não manifesto como dogmatizar; e isso, tanto se pretendem partir da apreensão, porque então os levamos a ter de investigar o tema antes de apreendê-lo, como se pretendem partir da investigação, porque neste caso os levamos a, antes de investigar, haver apreendido aquilo que se investigará.
De modo que, em virtude disso, nem podem apreender nada do não manifesto, nem pronunciar-se com segurança sobre ele. A partir do que se convenhará, creio eu, em que a charlatanice dogmática se desmorona sem mais, e entra em cena a filosofia cética.
Ora pois, se afirmam que não dizem que se requer que a investigação seja precedida por tal tipo de apreensão, mas apenas pelo “compreender”, então o ato de investigar não é algo impossível para os que mantêm em suspenso o juízo acerca da realidade das coisas não manifestas; pois o cético não se exclui – suponho! – do compreender, que é algo que surge das coisas que passivamente se oferecem à sua razão e se mostram com claridade, e que de modo algum é conseqüência da realidade objetiva das considerações teóricas. De fato, não só entendemos aquilo que – como dizem eles – tem existência real, mas inclusive o que não a possui!
Daí que o cético permaneça dentro dos preceitos do ceticismo, tanto ao investigar como ao compreender, pois fica claro que assente àquilo que se oferece segundo uma representação passiva, de acordo com o que lhe aparece.
E agora, cuide-se para que não se vejam excluídos da investigação os dogmáticos! Pois não é, para os que confessam desconhecer as coisas tal como são objetivamente, para os que seria incongruente investigar cada vez mais sobre elas, mas para aqueles que dão por suposto que as conhecem com exatidão.
Com efeito, para estes, a investigação já chegou ao seu objetivo, segundo pensam eles; enquanto que para os outros ela culmina naquilo em que se sustém qualquer investigação: saber que não encontraram aquilo que buscam.
Deste modo, devemos examinar cada parte da assim chamada Filosofia, de forma concisa por ora.
E posto que, quanto às partes da Filosofia, tem havido entre os dogmáticos muita divergência – pois uns dizem que há somente uma Filosofia, outros que existem duas, e outros ainda que são três –, sobre o que não seria proveitoso estender-nos demasiadamente por ora, nós, expondo com imparcialidade a opinião dos que mais a fundo parecem ter-se ocupado do tema, adaptaremos a ela a nossa argumentação.


II

A PARTIR DE ONDE SE INICIA A INVESTIGAÇÃO CONTRA OS DOGMÁTICOS


Ora, os estóicos e alguns outros dizem que há três partes na Filosofia: a Lógica, o estudo da Realidade[2] e a Ética.
E certamente começam seus ensinamentos pela Lógica, tendo havido, não obstante, muita divergência entre eles quanto a partir de onde ela deve iniciar-se.
Seguindo-lhes sem dogmatismos – porque aquilo que se expõe nas três partes necessita de crítica e de critério, e porque o estudo do critério parece estar incluído na parte da Lógica –, comecemos pelo estudo do critério e pela Lógica.


III

SOBRE O CRITÉRIO


Advirta-se antes quanto ao seguinte:
Que se dá o nome de “critério” tanto àquilo pelo que – dizem eles – se julga da realidade ou não realidade de algo, como àquilo que nos guia.
E que por enquanto nos deteremos naquilo que se diz ser o Critério da Verdade, pois relativamente ao segundo significado já tratamos no estudo [geral] do ceticismo.[3]
Assim, o critério de que trata este estudo se entende de três formas: geral, particular e específico.
No sentido geral, significa todo instrumento de valoração de uma apreensão; significado segundo o qual se chamam assim “critérios”, incluindo as coisas naturais, como a visão.
No sentido particular, é todo instrumento técnico de valoração de uma apreensão, como uma regra ou uma norma.
No sentido específico, é todo instrumento de valoração de uma apreensão de algo não manifesto; segundo o qual não se chamam critérios às coisas da vida, mas somente às da Lógica e àquelas que os dogmáticos propõem para o discernimento da Verdade.
Deixemos claro desde já que tratamos aqui basicamente do critério lógico.
Mas o critério lógico possui igualmente três formas: “por quem”, “com quem” e “de acordo com quem”.
Assim, “por quem” é o homem, “com quem” significa um sentido ou a inteligência, e “de acordo com quem” é a aplicação da representação mental sobre a coisa ajuizada, de acordo com a qual o homem julga com alguma das citadas faculdades.
De modo que é oportuno fazer tais esclarecimentos, para que compreendamos a origem da nossa argumentação.
Agora, passemos à réplica contra os que, temerariamente, afirmam haver apreendido o critério da Verdade, iniciando pela discussão que existe sobre isto.


IV

SE EXISTE REALMENTE ALGUM CRITÉRIO DE VERDADE


Ora, entre os que trataram do critério, há os que afirmaram que ele existe, como os estóicos e alguns outros. E há os que afirmaram que ele não existe, como, além de outros, Xeníades de Corinto e Xenófanes de Colofon, que disse: “E a opinião se tem imposto em tudo”. De nossa parte, duvidamos se ele existe ou não.
Forçosamente, dirão que esta discussão é decidível, ou que é indecidível. Mas se for considerada indecidível, concordarão em que se deve manter em suspenso o juízo. E se for considerada decidível, devem dizer como será decidida, quando não temos nenhum critério admitido, nem sabemos com certeza – ao contrário, é justo o que estamos investigando – se ele existe!
E de outro lado, para que a disputa em torno do critério se resolva, é necessário que tenhamos um critério que já esteja admitido, por meio do qual possamos elucidá-la. Deste modo, ao incorrer a argumentação no tropo do círculo vicioso, a escolha do critério se revela problemática. Sem que tampouco nós lhes permitamos – por hipótese – escolher um critério. E fazendo-os cair numa recorrência ad infinitum, caso desejem elucidar um critério com outro critério. Ademais, como a demonstração necessita de um critério já demonstrado, e o critério, de uma demonstração já elucidada, caem no tropo do círculo vicioso.
Ainda que consideremos, desde já, que isto seja suficiente para mostrar o atrevimento dos dogmáticos em sua argumentação sobre o critério, para que possamos melhor refutá-los, sem dúvida não será demais insistir neste ponto.
Não pretendemos refutar cada uma das opiniões sobre o critério, pois a disputa tornar-se-ia impossível, e assim seria necessário que também nós caíssemos numa argumentação desconexa.
Mas, uma vez que o critério sobre o qual estamos investigando parece ter uma natureza tripla – “por quem”, “com quem” e “de acordo com quem” –, faremos ver sua inapreensibilidade recorrendo por seu turno a cada um desses casos. Assim, com efeito, a argumentação resultará por sua vez metódica e completa.
E iniciaremos pela forma “por quem”, pois parece que, de certo modo, as demais formas são questionadas também junto com esta.

V

SOBRE O “POR QUEM”


a Não se sabe o que é o homem

Ora, a mim me parece que “o homem” – pelo menos de acordo com o exposto pelos dogmáticos – não somente é inapreensível, mas também ininteligível.
Assim, escutamos o Sócrates de Platão admitir expressamente não saber se ele é um homem ou outra coisa.[4]
E quando pretendem estabelecer o conceito de homem, primeiro se enredam em discussões e depois dizem até coisas ininteligíveis.
Demócrito, com efeito, diz que “o homem é o que todos sabemos”. Mas, segundo esse dito, não conhecemos o homem, porque também sabemos de cachorros, e então também o cachorro seria um homem, e porque não conhecemos alguns homens, motivo pelo qual eles não seriam homens. E mais ainda, segundo esse conceito, ninguém poderia ser um homem; pois se ele diz que o homem deve ser conhecido por todos, e homem nenhum é conhecido de todos os homens, assim, de acordo com ele, ninguém seria um homem.
E não dizemos isto para fazer sofismas, mas está claro a partir da conclusão de sua obra. Diz, com efeito, esse varão, que somente os átomos e o vazio são reais de verdade; os quais, diz, não apenas são uma realidade nos animais, mas em todos os compostos. De modo que, de acordo com isto, não poderemos conhecer a realidade específica do homem, dado que os átomos são comuns a tudo, e que nenhuma outra coisa é real fora deles; conseqüentemente, não podemos distinguir o homem dos demais animais nem somos capazes de conhecê-lo de uma forma diferenciada.
E Epicuro diz que o homem é “a figura animada tal”. E sem embargo, de acordo com isto, já que o homem é reconhecido por uma indicação concreta, aquele que não esteja assinalado diretamente não será um homem. E se alguém assinala uma mulher, o varão não será um ser humano. E se assinala um varão, a mulher é que não será um ser humano. E o mesmo concluiremos também a partir da diversidade de circunstâncias que conhecemos pelo quarto tropo da suspensão do juízo.
Outros costumavam dizer que “o homem é um animal racional, mortal, receptivo à inteligência e ao saber”. Desde já, dado que no primeiro tropo da suspensão do juízo se indica que nenhum animal é irracional, e que, ao contrário, todos são receptivos à inteligência e ao saber, não saberíamos em definitivo de que modo entendem eles aquilo que afirmam. Ademais, quanto aos acidentes[5] postos nessa definição, ou bem os citam em ato ou bem em possibilidade. Ora, se os citam em ato, não é homem nem aquele que não tenha conseguido um saber completo, nem aquele que não é perfeito em sua capacidade racional, nem mesmo aquele que não esteja já morto; pois isso é “morto em ato”. E se os citam em possibilidade, não seria homem nem o que possui uma Razão perfeita, nem o que tenha conseguido inteligência e saber; e isso é ainda mais absurdo que o exemplo anterior! Por conseguinte, por esta definição, a noção de homem também se tem mostrado inconsistente.
E Platão, quando declara que “o homem é um animal sem penas, bípede, de unhas lisas, receptivo ao saber político”, nem mesmo ele espera que isso seja algo seguro. Pois se também o homem é uma das coisas que, segundo ele, “encontram-se em devir,[6] mas realmente nunca são”, e se, de acordo com ele, é impossível manifestar-se com segurança sobre algo que nunca é, então Platão tampouco esperaria que esta definição pudesse ser tomada como segura, mas – como era seu costume – tomando-a de acordo com o provável.
Mas, se por condescendência, concordássemos em que é possível entender o que é o homem, seria algo inapreensível.
Com efeito, o homem é composto de corpo e alma. Mas, seguramente, não se apreende nem a alma, nem o corpo. Por conseguinte, tampouco o homem.
E que não se pode apreender o corpo, é algo evidente a partir do seguinte:
Os acidentes de uma coisa são distintos da própria coisa. Assim, quando se nos oferece uma cor ou algo semelhante, somente se manifesta o que é acidental ao corpo, mas não o próprio corpo.
Além do mais, sabe-se que o corpo possui três dimensões. Assim, para se apreender o corpo, deveríamos apreender a largura, a altura e a profundidade. Claro que se isso pudesse ocorrer, saberíamos reconhecer os objetos de ouro adulterados com prata! Por conseguinte, tampouco se apreende o corpo.
E, para deixar definitivamente de lado a discussão sobre o corpo, afirmamos uma vez mais que ele é inapreensível ao homem pelo fato de que a alma é inapreensível. E que a alma é inapreensível, é algo evidente a partir do seguinte:
Dos que trataram da alma – para passarmos ao largo da inacabável polêmica a esse respeito –, afirmaram uns que a alma não existe, como os seguidores de Dicearco de Messina; outros, que ela existe; e outros se abstiveram de emitir opinião.
Ora, se os dogmáticos dizem que tal disputa é indecidível, concedem que a alma é algo inapreensível.
E se for decidível, que digam de que modo a decidem. Pois não poderão decidir a questão com os sentidos, porque eles mesmos dizem que a alma é inteligível; enquanto que, se afirmam que decidirão com a inteligência, argumentaremos que a inteligência é a parte menos manifesta da alma – segundo assinalam os que são pela existência da alma, discordando porém sobre a inteligência –, então, se pretendem apreender a alma e elucidar a disputa sobre ela por meio da inteligência, pretenderão elucidar e assegurar aquilo que menos se questiona com o que mais se questiona, o que é absurdo. E assim, em conseqüência, tampouco por meio da inteligência se poderá esclarecer a questão sobre a alma. Por conseguinte, com coisa alguma se poderá esclarecê-la.
Mas se assim é, a alma é inapreensível. De onde tampouco o homem poderia ser apreendido.

b Não está claro que o homem seja aquele que deva julgar

Mas, mesmo no caso de concedermos que se possa apreender o que é o homem, não seria possível entender por que as coisas devam ser julgadas por ele.
Com efeito, quem diz que as coisas devem ser julgadas pelo homem, o afirma sem demonstração ou com demonstração.
Mas não com demonstração. Pois a demonstração há de ser verdadeira e contrastada e, por isso, contrastada igualmente por alguém. Ora, posto que não podemos afirmar sem discussão por quem poderá ser contrastada a própria demonstração – já que estamos investigando justamente o critério “por quem” –, não poderemos contrastar a própria demonstração. E por isso, tampouco poderemos demonstrar o critério de que trata este estudo.
E se afirma sem demonstração que as coisas hão de ser ajuizadas pelo homem, tal afirmação não será digna de crédito.
De modo que não poderemos assegurar que o homem seja o critério “por quem”.
E ademais, por quem se ajuiza que o homem é o critério “por quem”?, pois certamente não serão acreditados, se o afirmam sem justificativa.
Mas se afirmam que deve ser pelo homem, se presumirá o que se está investigando.
E se dizem que por outro animal, como se aceita esse animal para valoração daquilo de que o homem é o critério? Pois se o aceitam sem justificativa prévia, não serão acreditados. E se aceitam com justificativa, de novo esta deve ser por sua vez justificada por algo. Mas se for justificada por si mesma, o mesmo absurdo se mantém, pois se ajuizará aquilo que se investiga com o que se investiga. E se pelo homem, surge o tropo do círculo vicioso. E se por alguma coisa além dessas, uma vez mais demandaremos dela o critério “por quem”, e assim até o infinito.
Em conseqüência, não poderemos afirmar – tampouco por isto – que as coisas devam ser ajuizadas pelo homem.

c Nem o critério de um só nem o da maioria são seguros

Mas seja, e creia-se, que as coisas devam ser julgadas pelo homem. Ora, dado que entre os homens há muita disparidade, ponham-se antes de acordo os dogmáticos quanto a que homem deve seguir-se e somente depois ordene-nos estar de acordo com ele. Mas se, enquanto a água flui e as altas árvores verdejam[7] – esse é exatamente o ditado –, discutirão sobre isto, como nos pressionam para, precipitadamente, darmos nosso assentimento a alguém?
Mas também no caso de dizerem que se deve crer no sábio, lhes perguntaremos em qual sábio: o epicurista? Ou o estóico? Ou o cirenáico? Ou o cínico? Não poderão, de fato, pronunciar-se de forma unânime.
E se alguém espera que, desistindo da busca do sábio, prestemos fé abertamente ao mais inteligente de quantos existem, em primeiro lugar também haverá discussões sobre quem é mais inteligente que os outros; ademais, ainda que se conceda sem discussão que possa determinar-se quem é o mais inteligente, nem assim este será digno de fé.
De fato, dado que a progressão quanto à inteligência – e da mesma forma para o retrocesso dela – é grande e praticamente infinita, afirmamos que é possível que surja outro mais inteligente que aquele que dizemos ser mais inteligente que os que o tem sido ou são. Ora, do mesmo modo que somos exortados a prestar fé àquele que neste momento se considera que, por sua inteligência, é mais sensato que os que o são ou têm sido, assim também deve-se prestar fé melhor que àquele que, depois desse, será mais inteligente que ele. E, surgido este, de novo deve-se esperar que surja outro mais inteligente que ele; e este, outro; e assim até o infinito. E não está claro se estes estariam de acordo uns com os outros ou se divergirão.
Motivo pelo qual, ainda que se convenha em que alguém é mais inteligente que os que o tem sido e os que o são, dado que não podemos decidir com segurança, pois não é evidente, que ninguém será, no futuro, mais inteligente que ele, haverá sempre que se esperar pelo julgamento daquele que, no futuro, será mais inteligente. E nunca devemos dar nosso assentimento nem sequer ao melhor.
E até mesmo no caso de que concedamos, por condescendência, que ninguém é nem foi nem será mais inteligente que esse suposto gênio, nem ainda assim convém prestar-lhe fé.
Com efeito, considerando que as pessoas inteligentes, quando, na elaboração de seus trabalhos, chegam a resultados prejudiciais, inclinam-se a defender que eles são proveitosos e verdadeiros, então: quando essa pessoa tão engenhosa disser algo, não saberemos se acaso o diz tal como o assunto é realmente, ou se, sendo falso, estará apresentando-o como verdadeiro e levando-nos a pensar nele como algo verdadeiro, graças, precisamente, ao fato de ser ele mais inteligente que todos os homens e não poder, justo por isto, ser questionado pelos outros.
Tampouco, pois, lhe daremos nosso assentimento como se julgasse as coisas com verdade. Porque, por um lado, nos parece que diz coisas verdadeiras, mas por outro lado nos parece que, devido à sua grande engenhosidade, diz o que diz porque quer apresentar como verdadeiras coisas falsas.
Por tudo isso, pois, tampouco concederemos fé no julgamento das coisas àquele que aparente ser realmente o mais inteligente de todos.
E se alguém afirma que deve-se aderir ao acordo da maioria, dizemos que isto é ilusório.
Em primeiro lugar, de fato, a Verdade é seguramente uma coisa pouco freqüente, e por isso é possível que somente um seja mais sábio que a maioria.
E em segundo lugar, a qualquer critério se lhe oporá mais gente do que aqueles que se acham de acordo com ele. Com efeito, a ele se oporão os que vejam preterido qualquer outro critério divergente daquele que parece ser admitido por alguns. E esses são, em resumo, mais numerosos que os que estão de acordo com ele.
E, além disto, os que estão de acordo: ou bem se acham em distintas disposições de ânimo, ou bem se acham em uma mesma disposição. Ora, quanto ao citado no exemplo acima, de nenhum modo se encontraria ele em disposições diferentes, pois como diriam o mesmo do mesmo?
E se estão em uma mesma disposição, então, posto que aquele que expõe uma coisa diferente possui uma única disposição, e também todos os que estão de acordo, tampouco se vê alguma distinção quanto às disposições a que nos referimos quanto ao número de gente.
Por conseguinte, não devemos confiar mais na maioria do que em um só.
Ademais, segundo recordamos no quarto tropo do ceticismo, a divisão dos juízos pela quantidade de gente é também algo inapreensível, pois existem infinitos homens concretos, e não podemos rastrear os juízos de todos eles e saber o que diz a maioria de todos os homens, e ainda o que é a maioria. E por isso, efetivamente, é absurdo o preconceito dos que julgam de acordo com a quantidade de gente.
Mas se tampouco confiamos no número de gente, não encontraremos ninguém por quem devam ser julgadas as coisas, não obstante haver admitido tanto por condescendência!
Por todo o exposto, o critério “por quem se ajuizará as coisas” é inapreensível.
E descritos junto com este também os outros critérios – pois cada um deles é uma parte ou um estado de ânimo ou uma atividade do homem –, talvez o passo seguinte devesse ser tratarmos de um novo tema, considerando que sobre este já temos discorrido o suficiente. Sem embargo, para não dar a impressão de que evitamos a refutação concreta de cada um desses critérios, diremos ainda umas poucas coisas sobre eles.
E discutiremos primeiro sobre o critério chamado “com que”.


VI

SOBRE O “COM QUE”

Grande e praticamente infinita tem sido a disputa sobre este critério entre os dogmáticos.
Raciocinando mais uma vez de forma metódica, dizemos que – posto que, segundo eles, o homem é o critério “por quem as coisas são julgadas” e posto que este não teria mais com que julgar que a sensibilidade e a inteligência, como eles mesmos reconhecem –, uma vez que mostramos que o homem não pode julgar nem somente com a sensibilidade nem apenas com a inteligência, nem com ambas as coisas, contradizemos de forma concisa todas e cada uma das opiniões particulares. Todas, com efeito, parecem reduzir-se a esses três casos.

a O critério dos sentidos

E comecemos pelos sentidos.
Considerando que alguns dizem que os sentidos possuem impressões vazias, porque nada do que parecem apreender tem existência real; e que outros dizem, por outro lado, que tem existência real tudo aquilo pelo qual consideram que são afetados; e outros ainda que uma parte tem existência real e outra parte não: de tudo isso resulta que não podemos estar de acordo com ninguém.
Com efeito, não usaremos a sensibilidade para julgarmos tal disputa, pois estamos investigando justamente se ela possui apenas impressões vazias, ou se apreende de forma verdadeira. E tampouco utilizaremos outra coisa, porque, de acordo com a nossa hipótese, não há nenhum outro critério com o qual deva julgar-se.
Em conseqüência, será indecidível e inapreensível a discussão sobre se a sensibilidade tem impressões vazias ou se apreende algo. Do que se segue que, no julgamento das coisas, não devemos atender somente à sensibilidade, sobre a qual não podemos dizer sequer se apreende algo.
Mas digamos, por condescendência, que os sentidos são capazes de perceber algo! Nem ainda assim, com efeito, serão considerados mais confiáveis quanto ao julgamento dos objetos exteriores.
De fato, os sentidos são contraditoriamente afetados pelas coisas externas. Do mesmo mel, por exemplo, o gosto recebe ora uma sensação amarga, ora doce. E a mesma cor, pode parecer à vista ora sanguinolenta, ora branca. E nem sequer o olfato é coerente consigo mesmo: uma pessoa que está com dor de cabeça acha o perfume desagradável, enquanto que outra, sem dor de cabeça, o considera agradável. E os possuídos, ou os que se acham em estado de frenesi, crêem ouvir vozes que nós não ouvimos. E a mesma água, para os que têm uma inflamação parece incomodamente quente, enquanto para os outros parece apenas morna.
Assim pois, é impossível afirmar-se que todas as percepções são verdadeiras, ou que umas são verdadeiras e outras falsas, ou ainda que todas são falsas, porque não temos nenhum critério para julgar aquilo que tencionamos dar preferência, nem dispomos de uma demonstração verdadeira e contrastada, ao se estar investigando aqui o critério de Verdade com o qual convém julgar se uma demonstração é verdadeira.
Por isso, será ingênuo aquele que pretenda dar crédito aos que estão em condições normais, e não aos que se acham em condições anômalas.
Com efeito, não será acreditado, se afirma isto sem demonstração, nem, de acordo com o que já afirmamos, disporá de uma demonstração verdadeira e contrastada.
Se, apesar de tudo, convencionou-se em que as percepções dos que estão em condições anômalas são questionáveis, ainda assim seria impossível o julgamento dos objetos exteriores apenas pelos sentidos. Pois, em todo caso, até à visão normal, uma mesma torre parece ora circular ora quadrangular. E pelo gosto, os mesmos alimentos são, para os que estão fartos, desagradáveis, e para os famintos, apetecíveis. De forma análoga, um mesmo som é percebido pelo ouvido à noite como muito alto, e durante o dia, como insignificante. E o olfato considera uma mesma coisa malcheirosa para a maioria, mas não para os curtidores de couro. E um mesmo tato recebe uma sensação de calor do vestíbulo, ao entrar na sala de banhos, e uma de frio, ao sair dela.
Assim, considerando que os sentidos se contradizem até em condições normais, e que sua contradição é irresolúvel, ao não dispormos de um critério consensual com o qual possam ser julgados, necessariamente sobrevêm as mesmas dúvidas.
E ainda cabe argumentar aqui sobre várias coisas além daquelas que indicamos nos tropos da suspensão do juízo.
Do que se segue que, provavelmente, não seja verdade que a sensibilidade, sozinha, possa julgar os objetos exteriores.

b O critério da inteligência

Assim, passemos em nossa argumentação à inteligência.
Ora, aqueles que, no julgamento das coisas, pretendem levar em conta somente a inteligência, não podem demonstrar de pronto que seja apreensível o fato de que existe a inteligência.
Com efeito, já que Górgias, ao dizer que nada existe, diz também que não existe a inteligência, enquanto que outros declaram que realmente existe, como resolveriam eles essa divergência? Pois nem o farão com a inteligência, já que dariam por certo o que está sob exame, nem com nenhuma outra coisa, pois em virtude da hipótese aqui subjacente, afirmam que não existe nada mais com que julgar as coisas.
Por conseguinte, a questão quanto a existir ou não a inteligência será indecidível e inapreensível; donde resulta que, no juízo das coisas, não deve seguir-se apenas a inteligência, ao não apreender-se-lhe em absoluto.
Mas dê-se por apreendida a inteligência, e dê-se por admitido que, por hipótese, ela exista. Digo que, ainda assim, ela não pode julgar as coisas.
Com efeito, se nem a si mesma ela se enxerga com clareza, mas discrepa sobre sua essência e sobre a forma de sua origem, e sobre o lugar onde se encontra, como poderia apreender com clareza algo das outras coisas?
Mas nem sequer, ainda que se conceda que a inteligência é capaz de julgar as coisas, encontraremos um modo de julgar de acordo com ela.
Com efeito, havendo muita controvérsia nessa questão da inteligência – pois uma é a inteligência de Górgias, segundo a qual ele afirma que nada existe, e outra a de Heráclito, segundo a qual ele diz que tudo existe, e outra ainda a daqueles que dizem que umas coisas existem e outras não –, não poderemos julgar a controvérsia sobre a inteligência nem poderemos dizer que tal tipo de inteligência deve ser levado em conta e outro tipo não. Pois se, dando razão a uma parte da disputa, nos atrevemos a julgar com alguma dessas inteligências, daremos por assumido o que se está investigando. E se o fazemos com algo distinto, negaremos que as coisas devam ser julgadas somente com a inteligência.
Além do mais, a partir do que foi dito acerca do critério denominado “por quem”, poderemos demonstrar que tampouco podemos encontrar uma inteligência mais arguta que as outras; e que, ainda que encontremos uma inteligência mais perspicaz que as inteligências que o têm sido e são, não devemos assentir a ela, pois não é evidente que, por sua vez, haverá no futuro outra mais arguta que ela; e que, ainda que supuséssemos uma inteligência tão aguda que nunca surgirá nenhuma para suplantá-la, ainda assim não assentiremos àquele que com ela julga, pois tememos que, ao apresentar-nos uma argumentação falsa, possa, pelo fato de estar dotado de tal agudeza de engenho, convencer-nos de que é verdadeira.
Assim, pois, tampouco há que se julgar as coisas somente com a inteligência.

c O critério da inteligência e dos sentidos juntos

Falta estudar se deve-se julgar as coisas com ambas as faculdades. O que, por sua vez, é impossível, pois os sentidos não apenas não guiam a inteligência até a apreensão, mas a estorvam.
Sem dúvida, por exemplo, foi porque o mel a uns parece amargo e a outros doce, que Demócrito disse que ele não é nem doce nem amargo, e Heráclito, que é ambas as coisas. E o mesmo argumento vale para os demais sentidos e coisas sensíveis.
Dessa forma, sempre que a inteligência parte dos sentidos, vê-se forçada a declarar coisas diferentes e contrapostas. E isso é impróprio de um critério de apreensão.
Ademais, há que se dizer isto: ou se julgam as coisas com todos os sentidos e as inteligências de todos, ou com alguns.
Mas se alguém afirma que se deve julgar com todos os sentidos e as inteligências de todos, pretenderá o impossível, ao aparecer tal oposição entre os sentidos e as inteligências. E de outro lado, seu argumento ruirá desde o momento em que é afirmação da inteligência de Górgias de que não se deve levar em conta nem a sensibilidade nem a inteligência.
E se deve-se julgar com alguns, como se resolverá tal questão, se não se possui um critério definido com o qual julgar os distintos sentidos e inteligências, e quais sentidos e inteligências devem ser levados em conta e quais não?
E se dizem que os sentidos e inteligências são julgados com os sentidos e a inteligência para assim julgar com alguns deles e com outros não, então estariam dando por assumido o que se está investigando, pois estamos investigando se alguém pode julgar com eles.
Depois, deve dizer-se também isto: ou bem os sentidos e as inteligências são julgados com os sentidos, ou bem com a inteligência, ou bem os sentidos com os sentidos, e as inteligências com a inteligência, ou bem os sentidos com a inteligência e as inteligências com os sentidos.
Ora, se pretendem julgar ambas as coisas somente com os sentidos, ou somente com a inteligência, evidentemente não julgarão com os sentidos e a inteligência, mas apenas com uma dessas coisas – aquela a qual elegeram. E então surgem as dificuldades antes citadas.
E se julgam os sentidos com os sentidos, e as inteligências com a inteligência, então, considerando que os sentidos contradizem os sentidos, e as inteligências, as inteligências, darão por assumido o que se está investigando, qualquer que seja o sentido que elejam para a valoração dos demais sentidos; pois tomarão uma parte da disputa como válida para o julgamento do que, em igualdade com ela, se está investigando. E o mesmo argumento se aplica às inteligências.
E se julgam as inteligências com os sentidos, e os sentidos com a inteligência, surgirá o tropo do círculo vicioso, segundo o qual, para que os sentidos sejam julgados, deve haver-se previamente julgado as inteligências, e para que as inteligências sejam contrastadas, deve haver-se examinado previamente os sentidos.
Assim, considerando que nossos instrumentos de juízo não podem ser julgados pelos da mesma espécie nem pelos da espécie contrária, não poderemos preferir uma inteligência em detrimento de outra, nem um sentido a outro sentido.
E, por isso, não dispomos de nada com que julgar; pois, se não podemos julgar com todos os sentidos e todas as inteligências, nem sabemos com quais devemos julgar e com quais não, então não teremos com que julgar as coisas.
então não teremos com que julgar as coisas.
De forma que, também nesse caso, o critério “com que” seria algo inexistente.

VII

SOBRE O CRITÉRIO “DE ACORDO COM QUE”


Levemos adiante, pois, a discussão sobre o critério de acordo com o qual afirmam que se julgam as coisas.
Sem dúvida, a primeira coisa a se dizer a respeito dele é: que o critério da “representação mental” não só é uma coisa inapreensível, mas também ininteligível.
Dizem, com efeito, que uma representação mental é um sinal da inteligência. Ora, já que a alma – e por extensão a inteligência – é, segundo dizem, um sopro, ou algo ainda mais tênue que um sopro, então ninguém poderá conceber nela um sinal; nem em forma de relevo, como vemos nas moedas, nem em forma da misteriosamente denominada “alteração”; pois, ao serem apagadas as primeiras pelas sucessivas alterações, a alma não mostraria a lembrança de tantos teoremas, como aqueles que constituem uma ciência aplicada.
Mas, ainda se se pudesse entender o que é uma representação mental, ainda assim ela seria uma coisa inapreensível. Com efeito, posto que é um estado da inteligência, e a inteligência – como já demonstramos – não se apreende, tampouco apreenderemos seu estado.
Em segundo lugar, nem ainda concedendo que a representação mental seja apreendida, se pode julgar as coisas de acordo com ela.
Com efeito, a inteligência, segundo afirmam eles, não incide por si mesma nas coisas externas nem as representa por si mesma, mas por meio dos sentidos; porém, os sentidos não apreendem os objetos exteriores, somente suas próprias sensações; ora, também a representação mental será representação das sensações dos sentidos, o que não coincide com o objeto exterior, pois não é o mesmo o mel, pelo fato de saber-me doce; nem o absinto, pelo fato de ser amargo; ao contrário, trata-se de coisas distintas.
Mas se a sensação em questão difere do objeto exterior, a representação mental não será representação do objeto exterior, mas de outra coisa distinta dele.
Assim, se a inteligência julga de acordo com essa representação, julga erroneamente, e não de acordo com a Realidade, motivo pelo qual é absurdo dizer que a Realidade exterior é julgada de acordo com a representação mental.
E tampouco é possível argüir que a alma apreende pelos sentidos os objetos exteriores, devido a que as sensações dos sentidos são semelhantes aos objetos exteriores.
Com efeito, como saberá a inteligência se as sensações dos sentidos são semelhantes às coisas sensíveis, quando nem ela se relaciona com o exterior, nem os sentidos lhe mostram – como argumentei nos tropos da suspensão do juízo – a natureza dessas coisas, mas suas próprias sensações?
Pois, da mesma forma que alguém que não conhece Sócrates e vê uma imagem sua, não sabe se essa imagem é semelhante a Sócrates, de idêntico modo, a inteligência, ao contemplar as sensações dos sentidos sem observar o exterior, tampouco saberá se as sensações dos sentidos são mesmo semelhantes aos objetos exteriores.
Conseqüentemente, não poderá julgar essas coisas de acordo com sua representação mental, nem sequer quanto ao parecido com as sensações.
Mas, por condescendência, admitamos – ademais de que se entende e se apreende – que a representação mental é adequada para que as coisas se julguem de acordo com ela; ainda que o argumento de fato faça ver melhor todo o contrário!
Ora, ou acreditaremos em toda e qualquer representação mental e julgaremos de acordo com elas, ou apenas em algumas.
Mas se acreditamos em qualquer representação mental, é evidente que também acreditaremos na representação mental de Xeníades, de acordo com a qual ele dizia que todas as representações mentais são dignas de crédito; e o argumento resultará invertido, no sentido de que nenhuma representação mental é tal que se possa julgar as coisas de acordo com ela.
E se acreditamos somente em algumas representações mentais, como decidiremos quais as representações que convém crer, e quais não devemos crer? Pois se se decide sem uma representação mental, concederão que a representação é inútil para julgar, já que estarão dizendo que algumas coisas podem ser julgadas sem ela; e se adota-se uma representação, como aceitarão essa representação escolhida para o julgamento das demais representações?
Certamente, lhes fará falta de novo uma representação para o julgamento da outra representação e outra, para o julgamento dessa, e assim até o infinito. Mas julgar infinitas coisas é impossível. Por conseguinte, é impossível falar quais representações devem servir como critério, e quais não.
Assim, já que, concedendo que há que se julgar as coisas de acordo com as representações mentais, o argumento naufraga em qualquer dos casos – tanto quanto a dar crédito a todas elas, como a dar crédito somente a algumas e a outras não –, deduz-se que não se deve tomar as representações mentais como critérios para o julgamento das coisas.
E contra o critério de acordo com o qual se dizia que se julgam as coisas, basta por enquanto mencionar o que segue, a título de resumo.
É preciso, sem embargo, dar-se conta de que não é nosso propósito – pois isso seria dogmático – dar a entender que o critério de Verdade seja inexistente. Apenas, como os dogmáticos crêem que estabeleceram de forma convincente que existe algum critério de Verdade, nós lhes temos contraposto outras razões, que também parecem convincentes; sem assegurar, porém, nem que sejam verdadeiras nem mais prováveis que as contrárias, mas concluindo pela suspensão do juízo devido à aparente equivalência entre essas razões e as que se dão entre os dogmáticos.


VIII

SOBRE O VERDADEIRO E A VERDADE


De todo modo, mesmo se, por hipótese, concedemos que haja algum critério de Verdade, será uma coisa inútil e supérflua, se observarmos que – na medida do que se diz entre os dogmáticos – a Verdade é uma coisa inexistente, e o verdadeiro, sem fundamento. E o observamos como se segue.
Diz-se que o verdadeiro difere da Verdade em três aspectos: em essência, estrutura e potência.
Em essência, porque o verdadeiro é imaterial, pois é uma apreciação e o sentido (de uma proposição). E a Verdade é uma coisa material, pois é um conhecimento sistemático, revelador de tudo o que é verdadeiro, e o conhecimento sistemático é um certo estado da mente, da mesma forma que o punho é um certo estado da mão; e a mente é uma coisa material, pois, segundo eles, é ar.
Em estrutura, porque o verdadeiro é uma coisa isolada, como por exemplo “Eu estou ditando”, enquanto que a Verdade se compõe do conhecimento sistemático de muitas coisas verdadeiras.
E em potência, porque a Verdade se obtém com um conhecimento sistemático, e o verdadeiro, não, o que os leva a afirmar que a Verdade só ocorre no sábio, enquanto que o verdadeiro pode dar-se também no néscio, na medida em que é possível que este diga alguma coisa verdadeira.
É o que dizem os dogmáticos.
Nós, atendendo uma vez mais ao plano prévio desta obra, de momento argumentaremos somente contra o verdadeiro, pois a Verdade – que se diz ser o conjunto do conhecimento das coisas verdadeiras – deve ser tratada também junto com isso.
E por sua vez, dado que uns argumentos – aqueles por meio dos quais fazemos sacudir os fundamentos mesmo do verdadeiro – são mais gerais, e outros – aqueles mediante os quais mostramos que o verdadeiro não existe, nem na expressão, nem em seu sentido, nem no movimento da inteligência – são particulares: isto dado, consideramos que, de momento, é suficiente expor apenas os mais gerais. Com efeito, do mesmo modo que, uma vez escavada a sustentação do muro, também se desmorona toda a sua superestrutura, removida a base do verdadeiro, resultam igualmente refutadas as sutilezas dogmáticas particulares.


IX

SE HÁ ALGO VERDADEIRO POR NATUREZA

Ora, quando há discussão entre os dogmáticos acerca do verdadeiro pois uns afirmam que há algo verdadeiro, e outros, que não há nada verdadeiro –, não é possível julgar essa discussão; porque aquele que diz que há algo verdadeiro, não será acreditado se o afirma sem demonstração; e se pretende apresentar uma demonstração, então:
Se admitir que a demonstração é falsa, seria indigno de crédito.
E se, de outro lado, afirmar que ela é verdadeira, cairá em um círculo vicioso. Ademais, se necessitar demonstrar que ela é verdadeira, necessitará também demonstrar a demonstração, e assim até o infinito; mas, como é impossível demonstrar infinitas coisas, por conseguinte, também é impossível saber se existe algo verdadeiro.
E evidentemente o “algo” – aquilo que dizem ser o mais genérico de tudo – ou é verdadeiro ou é falso, ou nem verdadeiro nem falso, ou é ao mesmo tempo falso e verdadeiro.
Mas, se dizem que é falso, estarão de acordo em que tudo é falso. Pois, da mesma forma que, por ser um animal um ser animado, também são seres animados todos os animais em particular: assim, se o mais genérico de tudo – o “algo” – é falso, também serão falsas todas as coisas em particular, e nada será verdadeiro. Do que se segue que nada é falso; pois também será falsa a afirmação de que “tudo é falso” ou de que “algo é falso”, que se acham incluídas no termo “tudo”.
E se o termo “algo” for verdadeiro, tudo será verdadeiro. Do que se segue que nada é verdadeiro, se realmente também esse algo real – e refiro-me à expressão “nada é verdadeiro” – é verdadeiro.
E se o termo “algo” é, ao mesmo tempo, falso e verdadeiro, cada uma das coisas em particular será por sua vez falsa e verdadeira. Do que se segue que nada é verdadeiro por natureza; pois o que tem por natureza ser verdadeiro, de nenhum modo poderia ser falso.
E se o termo “algo” não é nem falso nem verdadeiro, resulta que todas as coisas em particular – que se afirma não serem nem falsas nem verdadeiras – não serão tampouco verdadeiras.
E por isso será, pois, obscuro para nós saber se o verdadeiro existe.
Além disso, ou as coisas verdadeiras são apenas coisas manifestas, ou são coisas não manifestas. Mas nada disso é verdadeiro, como provaremos. Logo, nada é verdadeiro.
Sem dúvida, se as coisas verdadeiras são somente coisas manifestas, então, de duas, uma: ou bem dirão que todas as coisas manifestas são verdadeiras, ou bem que somente algumas.
Mas se dizem que as duas alternativas lhes confunde o argumento, pois para alguns é manifesto que nada é verdadeiro.
E se dizem que somente algumas coisas são verdadeiras, ninguém pode afirmá-lo sem um critério sobre quais coisas são verdadeiras e quais são falsas; e, ao necessitar de um critério, de duas, uma: ou afirma que esse critério é uma coisa manifesta, ou que é uma coisa não manifesta. Mas de nenhum modo dirá que é uma coisa não manifesta, pois agora somente se supõem verdadeiras as coisas manifestas. E se diz que é uma coisa manifesta, então: posto que se investiga quais coisas manifestas são verdadeiras e quais são falsas, também essa coisa manifesta que se toma para o julgamento das coisas manifestas necessitará por sua vez de outro critério manifesto, e este de outro, e assim até o infinito. Mas, como é impossível julgar coisas infinitas, em conseqüência, é impossível captar se as coisas verdadeiras são todas as coisas manifestas.
Analogamente, tampouco aquele que diz que somente as coisas não manifestas são verdadeiras, dirá que todas elas são verdadeiras. Pois não irá dizer que também é verdade a afirmação de que as estrelas são em número par, ou que na realidade são em número ímpar!
E se afirma que apenas algumas o são, com que critério julgaremos que tais coisas não manifestas são verdadeiras, e outras falsas? Com efeito, não será com uma coisa manifesta. E se for com uma coisa não manifesta, então: dado que estamos investigando quais coisas não manifestas são verdadeiras, e quais são falsas, essa coisa não manifesta exigirá outra coisa não manifesta que a julgue, e esta outra, e assim até o infinito.
Dondo se segue que as coisas verdadeiras tampouco são somente coisas não manifestas.
Falta analisar se algumas coisas verdadeiras são manifestas e outras são não manifestas. Mas também isso é impossível. Com efeito, ou são verdadeiras todas as coisas manifestas e todas as não manifestas, ou somente o são algumas manifestas e algumas não manifestas.
Ora, se o são todas, uma vez mais se lhes ruirá o argumento, ao conceder-se que também é verdadeira a afirmação de que “nada é verdade”. Ademais, se estará dizendo ser verdadeira tanto a afirmação de que as estrelas são em número par, como a de que elas são na realidade em número ímpar.
E se somente algumas coisas manifestas e algumas não manifestas são verdadeiras, como julgaremos que tais coisas manifestas são verdadeiras, e tais outras falsas? Com efeito, se julgarmos com uma coisa manifesta, o argumento se perde em uma recorrência ad infinitum. E se julgarmos com uma coisa não manifesta, então, posto que também o não manifesto precisa de valoração, com quê se julgará essa coisa não manifesta? Se julgarmos com uma coisa manifesta, surgirá o tropo do círculo vicioso, e se julgarmos com uma coisa não manifesta, perde-se em uma recorrência ad infinitum.
E de forma semelhante, se há de argumentar com as coisas não manifestas. Com efeito, aquele que pretende julgá-las com algo não manifesto, cai numa recorrência ad infinitum. E aquele que o faz com uma manifesta, de duas uma: ou o faz recorrendo uma e outra vez até o infinito a uma coisa manifesta, ou permutando com uma coisa não manifesta, incorrendo assim em um círculo vicioso.
Em conseqüência, é falso dizer que umas coisas verdadeiras são manifestas, e outras são não manifestas.
Assim, se não são verdadeiras nem apenas as coisas manifestas, nem somente as coisas não manifestas, nem tampouco algumas manifestas e algumas não manifestas, então nada é verdadeiro.
Mas, se nada é verdadeiro, e se supõe que se use esse critério para o julgamento do verdadeiro, ele torna-se inútil e supérfluo. Até mesmo se, por condescendência, aceitarmos que ele possua algum fundamento.
E se realmente há que se manter em suspenso o juízo sobre se há alguma coisa verdadeira, o que se conclui é que se precipitam aqueles que afirmam que “a Dialética é a ciência do falso, do verdadeiro e do que não é nem uma coisa nem outra”.
E, uma vez que o critério de Verdade se tem mostrado incerto, tampouco será possível pronunciar-se firmemente sobre as coisas que, na medida do que se diz entre os dogmáticos, parecem ser manifestas. Nem tampouco poderão pronunciar-se sobre as coisas não manifestas, pois, uma vez que os dogmáticos consideram que estas coisas são apreendidas a partir das coisas manifestas, se sobre as chamadas coisas manifestas nos é preciso manter em suspenso o juízo, como nos atreveríamos a pronunciar-nos sobre as coisas não manifestas?
Mas, além do mais, enfretaremos as coisas não manifestas de uma forma específica. E como parece que essas coisas se apreendem e confirmam por meio de um signo ou de uma demonstração, faremos ver em breve que também sobre essas coisas convém manter em suspenso o juízo.
E começaremos pelo signo, pois a demonstração parece ser, pelo seu gênero, também um signo.

X

SOBRE O SIGNO


Segundo os dogmáticos, umas coisas são manifestas, e outras, não manifestas; e entre as não manifestas, umas são “irremissivelmente não manifestas”, e outras, “naturalmente não manifestas”.
E dizem que são manifestas as coisas que nos vêm ao conhecimento por si mesmas, como por exemplo a afirmação “é de dia”.
E são irremissivelmente não manifestas as coisas que não foram feitas para oferecerem-se à nossa compreensão, como o fato de não sabermos se as estrelas são em número par.
E ocasionalmente não manifestas, as que, apesar de possuir uma natureza manifesta, algumas vezes não resultam manifestas devido a certas circunstâncias externas, como o é agora para mim a cidade dos atenienses.
E são naturalmente não manifestas as coisas que não têm por natureza estarem sob nossa percepção direta, como os poros, perceptíveis somente pela inteligência. Estes, com efeito, não se manifestam por si mesmos; e se de fato são percebidos, o serão a partir de outras coisas, como por exemplo o suor ou outra coisa similar.
Deste modo, afirmam eles que as coisas manifestas não necessitam de nenhum signo, pois são captadas por si mesmas. E tampouco necessitam de signo as coisas irremissivelmente não manifestas, porquanto são coisas que, por princípio, não se captam nunca. Enquanto que as coisas ocasionalmente não manifestas, bem como as naturalmente não manifestas, são captadas por meio de signos; não a partir deles mesmos, mas as ocasionalmente não manifestas se captam mediante os evocativos, e as naturalmente não manifestas, por meio dos indicativos.
Assim, uns signos são, segundo eles, evocativos, e outros, indicativos.
E chamam signo evocativo àquele que, por haver sido observado claramente junto com o significado, nos leva – ao oferecer-se-nos quando isso não está presente – à lembrança daquilo que com ele foi observado, e agora não se nos oferece explicitamente. À maneira do que ocorre com a fumaça e o fogo.
Signo indicativo – como dizem eles – é aquele que, apesar de não haver sido observado explicitamente junto com o significado, sem embargo, por sua peculiar natureza e constituição, denota aquilo de que ele é o sinal. Tal como são signos da alma os movimentos corporais. Daí que definem este tipo de signo da seguinte forma: “signo indicativo é toda apreciação que, em uma implicação válida, forma o antecedente e é reveladora do conseqüente”.
Ora, sendo dupla – como acabamos de dizer – a divisão dos signos, não argumentaremos contra qualquer signo, mas somente contra o indicativo, tal como é definido pelos dogmáticos. O evocativo, com efeito, encontra-se respaldado pela vida, posto que, aquele que vê fumaça, se lembra do fogo e, ao contemplar uma cicatriz, afirma ter havido ali uma ferida.
Assim, não somente não nos opomos à vida, mas até lutamos a seu favor, ao assentir sem dogmatismos àquilo que por ela encontra-se respaldado. Opomo-nos, porém, àquilo que for inventado, por sua conta e risco, pelos dogmáticos.
É conveniente, sem dúvida, deixar dito isto para melhor aclarar o que estamos investigando.
Passemos, ato contínuo, à sua refutação, sem pretender em absoluto demonstrar que o signo indicativo é uma coisa inexistente, mas fazendo ver a aparente equivalência dos argumentos que se invocam a favor de sua existência e de sua não existência.

XI

SE EXISTE ALGUM SIGNO INDICATIVO

a Definições relativas ao tema

Ora, o signo – na medida daquilo que dele se diz entre os dogmáticos – é uma coisa ininteligível.
Logo de saída, por exemplo, ao querer estabelecer o conceito de signo, aqueles que sobre ele parecem ter se debruçado mais – os estóicos – dizem que “signo é toda apreciação que, em uma afirmação válida, forma o antecedente e é reveladora do conseqüente”.
E dizem que “a apreciação é o sentido de uma proposição, completo e expressável por si mesmo”.
E que uma afirmação válida é aquela que, partindo de uma coisa verdadeira, não conclui com uma coisa falsa.
A afirmação, com efeito, ou parte de uma coisa verdadeira e termina em uma verdadeira – por exemplo, a afimação “se é de dia, há luz” –, ou parte de uma falsa e termina em uma falsa – por exemplo, “se a Terra voa, a Terra é alada” –, ou parte de uma coisa verdadeira e termina em uma falsa – por exemplo, “se a Terra existe, a Terra voa” –, ou ainda parte de uma falsa e termina em uma verdadeira – por exemplo, “se a Terra voa, a Terra existe”.
Destas, somente a que parte de uma coisa verdadeira e termina em uma falsa, dizem eles que é não válida, e que as demais são válidas.
E chamam antecedente ao que, em uma afirmação que parte de uma coisa verdadeira e termina em uma verdadeira, a encabeça.
E é reveladora do conseqüente, porque, por exemplo, na afirmação “se ela tem leite, deu à luz”, a afirmação “se ela tem leite” parece ser aquilo que revela que ela deu à luz.

b Dúvidas sobre a realidade dessas coisas

Isso dizem eles.
Nós afirmamos que, em primeiro lugar, não está claro se existe algum sentido em alguma preposição.
Com efeito, posto que, entre os dogmáticos, os epicúreos dizem que não existe nenhum sentido, e os estóicos afirmam que existe, então, quando os estóicos dizem que existe algum sentido, ou bem se valem de sua afirmação em sentido restrito, ou de uma demonstração.
Mas se se valem somente de sua afirmação, os epicúreos lhes oporão a afirmação que diz que não existe nenhum sentido.
E se adotam uma demonstração, ao compor-se esta de sentidos – posto que a demonstração é feita de apreciações ou sentidos –, não poderá tomar-se como aval de que o sentido existe, pois como pode conceder que existe um conjunto de sentidos aquele que não admite que exista o sentido? Evidentemente, pretenderá que se justifique o investigado com o investigado aquele que intente estabelecer que existe algum sentido a partir da existência de um conjunto de sentidos.
Assim, se não é possível estabelecer nem com ou sem uma demonstração que existe algum sentido, não fica claro se existe algum sentido.
E analogamente, tampouco restará claro se existe a apreciação, pois a apreciação é o sentido da preposição.
Mas, nem sequer concedendo, por hipótese, que o sentido exista, a apreciação surge como algo real ao estar consituída por sentidos que não coexistem uns com os outros. Assim, por exemplo, em “Se é de dia, há luz”, quando digo “é de dia”, não existe “há luz”, e quando digo “há luz”, já não existe “é de dia”.
Ora, se é impossível que exista algo que se compõe de várias coisas, quando as próprias partes não coexistem entre si, e se as partes de que se compõe a apreciação não coexistem entre si, então a apreciação não existe.
Porém, mesmo no caso de passarmos por cima disto, a afirmação válida surgiria como algo inapreensível.
Com efeito, Fílon diz que uma afirmação válida é “a que não termina em uma coisa falsa, partindo de uma verdadeira”. Por exemplo, dado que é de dia e que estou ditando, a afirmação “Se é de dia, eu estou ditando”.
Mas Deodoro diz que afirmação válida é “aquela que nem poderia nem pode concluir com uma coisa falsa, partindo de uma verdadeira”. De acordo com isto, a afirmação citada antes parece ser falsa; pois – dado que é de dia – se eu me calasse, essa afirmação concluiria em uma coisa falsa, partindo de uma verdadeira. Em troca, a seguinte afirmação seria verdadeira: “Se os elementos dos seres não são indivisíveis, os elementos dos seres são indivisíveis”. Com efeito, ainda que parta de uma coisa falsa – “os elementos dos seres não são indivisíveis” – termina em todo caso em uma coisa, segundo ele, verdadeira: “os elementos dos seres são indivisíveis”.
E os que introduzem a coerência, dizem que uma afirmação é válida quando “a negação do que nela aparece como consequente se contrapõe também ao que nela está como antecedente”. De acordo com isto, as implicações citadas não são válidas, enquanto a seguinte é verdadeira: “Se é de dia, é de dia”.
E os que julgam pelo sentido implícito, dizem que é verdadeira uma afirmação cujo consequente está incluído implicitamente no antecedente. Segundo eles, será falsa a afirmação “Se é de dia, é de dia”; e igualmente qualquer afirmação que duplique uma apreciação; pois é impossível que algo esteja implícito em si mesmo.
Ora, seguramente esse desacordo parecerá impossível de ser resolvido, pois, se dermos preferência a uma das posições citadas, não seremos dignos de crédito, com ou sem demonstração.
Além disto, parece que a demonstração é válida quando sua conclusão se segue da interseção de suas premissas, como o consequente do antecedente; por exemplo: a demonstração “Se é de dia, há luz; mas efetivamente é de dia; logo, há luz” equivale à afirmação “Se sempre-que-é-de-dia-há-luz---e---é-de-dia, então, há luz”. Mas, posto que se está investigando sobre como ajuizamos a dependência do consequente em relação ao antecedente, surge o tropo do círculo vicioso; pois, para que o juízo sobre a afirmação possa ser demonstrado, é preciso que a conclusão seja consequência das premissas da demonstração, como viemos afirmando. E, por sua vez, para que isso se admita, deve haver-se ajuizado já a afirmação e a dependência, o que é absurdo.
Portanto, o que resta da afirmação válida é inapreensível.
Mas também é igualmente duvidoso o que se obtém do antecedente.
Com efeito, o antecedente é – segundo dizem – aquilo que encabeça uma afirmação que parte de uma coisa verdadeira e conclui com uma coisa igualmente verdadeira. Mas se é o signo revelador do consequente, ou o consequente é manifesto, ou é não manifesto.
Porém, se o consequente é manifesto, não precisará já do revelador, mas será captado junto com ele, e não será “seu significado”; assim, tampouco aquele será signo deste.
E se o consequente é não manifesto, então, posto que sobre as coisas não manifestas se tem discutido sem um possível acordo sobre quais delas são verdadeiras e quais são falsas, e, de modo geral, se há alguma delas verdadeira, não restará claro se a afirmação conclui com algo verdadeiro. Do que se segue que tampouco estará claro se o que a encabeça é um antecedente.
Mas, supondo que deixemos de lado também isto, não pode ser revelador do consequente, ao menos se o significado se der em relação ao signo, e seja ao mesmo tempo percebido com ele.
Com efeito, as coisas correlatas se captam conjuntamente. E assim como “à direita”, enquanto “direita da esquerda”, não pode ser entendida antes de “esquerda”, e vice-versa. E de modo análogo nas demais coisas correlatas: assim tampouco será possível que o signo, enquanto correlato ao significado, se apreenda antes deste.
Mas se o signo não é captado antes do significado, tampouco pode ser realmente revelador daquilo que se apreende simultaneamente com ele, e não depois dele. Deste modo, o signo é uma coisa ininteligível, inclusive segundo o que se diz entre a maioria dos que não concordam com isso.
Dizem, com efeito, que o signo é correlato ao significado e revelador deste, com o que se torna signo. Daí que, se realmente for correlato – e correlato do significado – deva forçosamente ser captado junto com o significado; da mesma forma que o significado de “a esquerda” se capta junto com o significado de “a direita”, e o significado de “acima” junto com o de “abaixo”, e assim as demais coisas correlativas. Mas, se é revelador do significado, deve ser forçosamente captado antes dele, para que, uma vez previamente conhecido, nos leve ao conceito daquilo que se conhece a partir dele. Porém, é impossível entender uma coisa que não se pode conhecer antes daquela que previamente tem necessidade de ser captada. Por conseguinte, é impossível entender uma coisa ao mesmo tempo correlativa e reveladora daquilo em relação ao qual se entende.
Mas afirmam que o signo é correlativo e revelador do significado; por conseguinte, é impossível entender o signo.

c Argmentos gerais contra o signo

Além de todas essas coisas, deve dizer-se também o seguinte:
Entre nossos predecessores, houve desacordo, afirmando uns que existe algum signo indicativo e afirmando outros que não existe nenhum signo indicativo.
Assim, aquele que afirma a existência de algum signo indicativo, o faz sem demonstração, valendo-se apenas de uma afirmação “pelada”, ou o faz com demonstração.
Mas se se vale somente da afirmação, será indigno de crédito.
E se pretendera fazer uma demonstração, daria por assumido aquilo que se investiga.
Com efeito, posto que a demonstração é – por seu gênero – um signo, então: ao se duvidar de que exista ou não algum signo, haverá também dúvida quanto à existência ou não da demonstração; da mesma forma que, ao especular-se – por conjecturas – se existe algum animal, especula-se também sobre a existência do homem, pois o homem é um animal. Mas é absurdo demonstrar aquilo que se questiona por meio daquilo que igualmente está em questão, ou por meio de si mesmo; por conseguinte, tampouco ninguém poderá assegurar com uma demonstração que o signo exista.
E se alguém não está capacitado nem com ou sem demonstração para pronunciar-se com certeza sobre o signo, resulta impossível estabelecer uma afirmação apreensiva sobre ele.
Mas se não se pode apreender o signo com precisão, tampouco se dirá que é significativo de algo, quando nem mesmo ele está livre de discussão! E, por isso, nem sequer será signo. Daí que, ainda de acordo com este argumento, o signo será uma coisa inexistente e ininteligível.
Não obstante, deve-se afirmar ainda o seguinte.
Ou os signos são somente coisas manifestas, ou somente coisas não manifestas; ou uns signos são coisas manifestas, e outros, coisas não manifestas. Mas nada disso é válido. Por conseguinte, o signo não existe.
Ora, que nem todos os signos são coisas não manifestas se torna patente a partir disso: como dizem os dogmáticos, o não manifesto não se manifesta por si mesmo, mas se oferece através de alguma outra coisa. Assim, também o signo, se for uma coisa não manifesta, necessitaria de algum outro signo, que também seria uma coisa não manifesta, posto que, segundo a hipótese escolhida, nenhum signo é uma coisa manifesta, e necessitaria de outro, e assim até o infinito; mas, como é impossível abarcar-se infinitos signos, resulta que é impossível apreender o signo, no caso de ser ele algo não manifesto.
E por isso, também será uma coisa inexistente, se não pode significar nada nem ser um signo pelo fato de que não se lhe apreende.
E se todos os signos são coisas manifestas, então:
Dado que o signo é também uma coisa correlativa, e correlativa ao significado, e dado que as coisas correlativas se apreendem conjuntamente: as que se dizem ser as coisas significadas serão coisas manifestas, já que se apreendem junto com coisas manifestas. Com efeito, do mesmo modo que, por oferecer-se conjuntamente a direita e a esquerda, não se diz com preferência que a direita se torna patente graças à esquerda, nem a esquerda graças à direita. Do mesmo modo, ao apreender-se conjuntamente o signo e o significado, não deve tampouco dizer-se com primazia que a direita se torna patente graças à esquerda, nem a esquerda, graças à direita. Da mesma forma, ao apreender-se conjuntamente o signo e o significado, não se deve tampouco dizer com primazia que se manifesta o signo ou que se manifesta o significado.
Mas se o significado é uma coisa manifesta, não o será o significado, visto não necessitar de seu significante nem do revelador. Então, da mesma forma que não existe a esquerda suprimida da direita, tampouco pode haver signo suprimido do significado. De modo que, se efetivamente alguém afirma que todos os signos são coisas manifestas, o signo aparecerá como algo inexistente.
Resta estudar se uns signos são coisas manifestas e outros, coisas não manifestas.
Mas, também neste caso, as dificuldades permanecem.
Com efeito, segundo temos dito, as coisas que se digam ser significados de signos manifestos serão manifestas; e uma vez não necessitarem de significante, tampouco serão, em um sentido amplo, coisas significadas; assim, tampouco aqueles não serão signos, nem significantes.
Quanto aos signos não manifestos, que necessitam das coisas que os revelem:
Se se afirma que estão significados por coisas não manifestas, resultarão inapreensíveis, por cair o argumento em uma recorrência ad infinitum, e por isso resultarão inexistentes, como temos dito.
E se estão significados por coisas manifestas, também eles, ao apreender-se conjuntamente com as coisas manifestas, que são seus signos, serão coisas manifestas, e portanto também inexistentes, pois é impossível que haja uma coisa que seja ao mesmo tempo não manifesta por natureza e manifesta, e os signos sobre os quais versa o argumento, havendo-se suposto não manifestos, com o volteio dado ao argumento, acabaram surgindo como manifestos.
Assim, se nem todos os signos são coisas manifestas, nem todas as coisas são não manifestas, nem uns signos são coisas manifestas e outros são coisas não manifestas, e se fora disso não há nada, como eles mesmos afirmam, então os chamados signos são coisas inexistentes.


d Argumentos a favor da existência do signo


Por ora, bastarão essas poucas coisas citadas, entre muitas outras, como mostra de que o signo indicativo não existe.
Porém, com o fim de ressaltar a idêntica validade dos argumentos contrários, exporemos também mostras quanto à existência do signo.
Ora, ou as expressões que se invocam contra o signo significam algo, ou não significam nada. E, se são carentes de significado, como haveriam de abalar a existência do signo? Enquanto que, se significam algo, existe um signo!
Além do mais, as argumentações contrárias ao signo são ou demonstrativas ou não demonstrativas. Mas se não são demonstrativas, não demonstram que o signo não existe. E se são demonstrativas, então: dado que a demonstração, ao ser reveladora da conclusão é – por sua natureza – um signo, existirá um signo.
Daí que também deva se considerar um argumento deste tipo: se existe algum signo, existe signo. E se não existe signo, existe signo. Pois o argumento de que não existe signo se torna evidente com uma demonstração, que certamente é um signo. Mas ou existe signo ou não existe signo. Logo, existe signo.
Claro que a esse argumento se opõe outro, do seguinte tipo: se não existe nenhum signo, não existe signo. E se existe algum signo – ou o que os dogmáticos afirmam ser um signo – não existe signo; pois o signo de que trata o argumento, que, segundo sua definição, se diz que é correlativo e revelador do significado, aparece, segundo estabelecemos, como inexistente. Mas ou existe signo, ou não existe signo. Logo, não existe signo.
E quanto às (nossas) expressões referentes ao signo, decidam os próprios dogmáticos se significam algo, ou se não significam nada. Pois, se não significam nada, não resulta crível que o signo exista. E se significam algo, o significado – e tal era o de que não existe o signo – será consequência delas; do que se segue, como fizemos notar, que não existe o signo – com um desvio total do argumento!
Mas, além disto, ao alegar-se deste modo argumentos plausíveis tanto a favor da existência do signo como da sua não existência, não se deve decidir preferencialmente nem pela existência do signo nem pela sua não existência.


XII

SOBRE A DEMONSTRAÇÃO


À vista disso, fica claro, por ora, que tampouco a demonstração é um assunto inquestionável. Pois, se sobre o signo mantemos o juízo em suspenso, também a demonstração é um tipo de signo; e será forçoso manter o juízo em suspenso também sobre ela.
Com efeito, concluiremos que os argumentos propostos para o caso do signo podem ser aplicados igualmente contra a demonstração, posto que também ela parece ser correlativa e reveladora da conclusão; do que se deriva quase tudo o que dissemos contra o signo.
Sem embargo, se a demonstração também deve ser tratada de forma específica, exporei concisamente nossa argumentação sobre ela, depois de tentar deixar claro previamente o que se entende por demonstração.
Ora, segundo dizem, “a demonstração é um argumento que, por meio de premissas prévias, revela por uma lógica de encadeamento (entre as proposições) uma inferência não evidente”.
E aquilo que afirmam ficará mais claro com o seguinte:
Um argumento é um sistema de premissas com uma inferência.
E dizem que suas premissas são as apreciações que se convencionam para o estabelecimento da inferência.
E que a inferência ou conclusão é a apreciação que se estabelece a partir das premissas.
Por exemplo, no argumento “Se é de dia, há luz; mas é de dia; logo, há luz”, a conclusão é “logo, há luz”, e o restante são as premissas.
E, dos argumentos, uns se acham bem encadeados e outros, mal encadeados.
O argumento citado, por exemplo, é bem encadeado; pois a expressão “há luz” se segue da intercessão de suas premissas – “é-de-dia---e---há luz se é de dia” – nesta implicação: “Se é de dia---e---há-luz-se-é-de-dia, há luz”.
E se acham mal encadeados os argumentos que não são deste tipo.
E, entre os argumentos bem encadeados, uns são verdadeiros, e outros, não verdadeiros”.
São verdadeiros os argumentos quando não somente é correta – como temos dito – a implicação construída a partir daquilo que se infere e da interseção das premissas, mas que, além disto, sejam realmente verdadeiras a conclusão e a apreciação dada pela interseção de suas premissas, que constitui o antecedente da implicação. E uma apreciação dada por uma interseção é verdadeira quando são verdadeiras todas as apreciações que a compõem, tal como a apreciação “é-de-dia---e---há luz se é de dia”.
E são não verdadeiros, os argumentos que não são assim. Com efeito, um argumento do tipo “Se é de noite, há escuridão; agora é de noite; logo, há escuridão” é bem encadeado, posto que é correta a implicação “Se-é-de-noite---e---há-escuridão-se-é-de-noite, há escuridão”. Sem embargo, o argumento não é verdadeiro; pois a apreciação dada pela interseção que faz papel de antecedente – “é-de-noite---e---há-escuridão-se-é-de-noite” – é uma falsidade, ao conter em si a falsidade “é-de-noite”; é, com efeito, uma falsidade toda apreciação dada por uma interseção que contenha em si alguma falsidade.
Daí que também afirmem que um argumento é verdadeiro quando encadeia bem uma conclusão verdadeira a partir de premissas verdadeiras.
E, por sua vez, dos argumentos verdadeiros, uns são demonstrativos e outros, não demonstrativos.
E são demonstrativos os argumentos que conduzem, por meio de coisas evidentes, a algo não evidente. E são não demonstrativos os que não são deste modo.
Por exemplo, o argumento do tipo “Se é de dia, há luz; mas é de dia; logo, há luz” não é demonstrativo; pois o fato de haver luz – que é sua conclusão – é uma coisa evidente. Sem embargo, o argumento do tipo “Se, através da pele, fluem gotas de suor, há nela poros imperceptíveis; mas através da pele fluem gotas de suor; logo, há poros imperceptíveis”, sem dúvida é demonstrativo, ao conter uma conclusão – a de que “logo, há poros imperceptíveis” – não evidente.
E dos argumentos que conduzem a algo não evidente, uns nos levam por suas premissas à conclusão, unicamente no sentido de nos encaminhar; outros, neste sentido, e também no sentido de revelá-la.
Por exemplo, o fazem somente no sentido de nos encaminhar à conclusão os argumentos que dependem da fé ou da memória, como o seguinte argumento: “Se algum dos deuses te diz que fulano será rico, fulano será rico; mas o deus – destaco, por exemplo, Zeus – te diz que fulano será rico; logo, fulano será rico”. Aqui, com efeito, assentimos à conclusão não tanto por exigência das premissas, mas pela fé no deus anunciado.
Mas outros argumentos nos conduzem à conclusão não somente no sentido de nos encaminhar a ela, mas também no sentido de revelá-la, como no argumento seguinte: “Se através da pele fluem gotas de suor, nela, há poros imperceptíveis”; mas, o primeiro; logo, o segundo”. Com efeito, o fato de que, na pele, fluem gotas de suor, é revelador de que os poros existem, ao se admitir de antemão que uma coisa líquida não possa passar através de um corpo compacto.
Assim, a demonstração deve ser um argumento bem encadeado, verdadeiro, e que tenha uma conclusão não evidente, que seja revelada pela força das premissas. E por isso se diz que “a demonstração é um argumento que, mediante premissas previamente admitidas, revela por encadeamento (entre as proposições) uma inferência não evidente”.
Nesses termos, pois, costumam expor o conceito de demonstração.


XIII

SE EXISTE A DEMONSTRAÇÃO


Mas, a partir mesmo daquilo que afirmam, é possível dar-se conta de que a demonstração é inexistente, refutando cada um dos detalhes dessa definição.
De fato, por exemplo, o argumento se compõe de apreciações. Mas os compostos não podem existir se as coisas de que se compõem não coexistem entre si; como é evidente no caso de uma cama e de coisas similares. E as partes do argumento não coexistem umas com as outras, pois, quando dizemos a primeira premissa ainda não existem outras premissas nem a conclusão, e quando afirmamos a segunda premissa, já não existe a primeira e ainda não existe a conclusão, e quando enunciamos a conclusão, já não subsistem suas premissas.
Consequentemente, as partes do argumento não coexistem umas com as outras. Daí que se pense que o argumento nem sequer existe.

a Sobre a noção de “argumento bem encadeado”

À parte isto, o argumento bem encadeado é incompreensível.
Com efeito, se este se distingue pela independência das distintas partes que compõem a implicação, e se pelo que faz a implicação, essa interdependência está sujeita a uma discussão irresolúvel e é ademais incompreensível, como vimos no tema do signo: então, também será incompreensível o argumento bem encadeado.
Os próprios dogmáticos afirmam que o argumento resulta mal encadeado ou por incoerência ou por omissão, ou por haver-se estabelecido seguindo um dos esquemas incorretos, ou por redundância.
Por incoerência, por exemplo, quando as premissas não tenham dependência nem entre si nem com a conclusão; como este: “Se é de dia, há luz; mas na praça se vende trigo; logo, Dión passeia”.
E por redundância, quando alguma premissa surge como excessiva para o bom encadeamento do argumento; por exemplo, “Se é de dia, há luz; mas é de dia e Dión passeia; logo, há luz”.
E por haver-se estabelecido seguindo um dos esquemas incorretos, quando o esquema do argumento não está bem encadeado. Por exemplo – enquanto, segundo dizem eles, são logicamente corretos estes argumentos: “Se é de dia, há luz; mas é de dia; logo, há luz”; “Se é de dia, há luz; mas não há luz; logo, não é de dia” –, está mal encadeado o seguinte argumento: “Se é de dia, há luz; mas há luz; logo, é de dia”.
Com efeito, posto que a implicação indica que, ao dar-se seu antecedente, se dá também o consequente, então:
Uma vez admitido o antecedente, também se infere de modo natural o consequente. E negado o consequente, também se nega o antecedente, pois, se foi dado o antecedente, também se daria o consequente.
Mas aceito de antemão o consequente, não necessariamente se põe sempre o antecedente; pois a implicação não assegurava que o antecedente se seguisse ao consequente, mas somente que o consequente seguia ao antecedente.
Por isso, pois, se diz que é logicamente correto o argumento que conclui no consequente a partir da implicação e do antecedente, e o que conduz ao contrário do antecedente a partir da implicação e do contrário do consequente.
Mas está mal encadeado o argumento que, como o citado, conduz ao antecedente a partir da implicação e do consequente; mesmo que ainda que sejam verdadeiras suas premissas, conduz a uma falsidade sempre que alguém fale de noite, à luz de uma lâmpada; pois neste caso é verdadeira a implicação “Se é de dia, há luz”, e também a premissa menor “mas há luz”; mas, sem embargo, é falsa a conclusão “logo, é de dia”.
E é incorreto por omissão um argumento em que se omite algo que se requeira para o bom encadeamento da conclusão. Por exemplo – enquanto que, a seu parecer, é correto este argumento: “A riqueza é ou boa ou má ou indiferente; mas não é nem má nem indiferente; logo, é boa” –, é enganoso por omissão o argumento “A riqueza é boa ou má; mas não é má; logo, é boa”.
Deste modo, se, de acordo com eles, não se pode verificar nenhuma diferença entre argumentos bem encadeados e mal encadeados, farei ver que o argumento bem encadeado é incompreensível. De forma que as sutilezas apresentadas por eles com a Dialética seriam supérfluas.
E o faço ver assim.
Afirmou-se que o argumento mal encadeado por incoerência se carateriza porque suas premissas não têm dependência nem entre si nem com a conclusão.
Ora, dado que o conhecimento dessa dependência deve estar precedido pelo juízo sobre a implicação, e que, como argumentamos antes, a implicação é inajuizável: então, também o será o argumento mal encadeado por incoerência.
Com efeito, aquele que diz que certo argumento está mal encadeado por incoerência, de duas uma:
Se somente apresenta sua afirmação, terá para contradizê-la a afirmação contrária.
E se a demonstra com um argumento, com vistas a demonstrar depois que são incoerentes as premissas do argumento que se diz ser incoerente, é preciso que previamente esse argumento esteja bem encadeado. E não saberemos se é demonstrativo, ao não dispor para implicação de um juízo indiscutível com que discernir se a conclusão é consequência da interseção das premissas do argumento.



NOTAS

[1] Isto é, o Estoicismo. O nome da escola se deriva de Pórtico (stoá, em grego), local onde seu fundador, Zenão de Cítio, dava suas aulas, em Atenas, no século III a. C.
[2] Ou Física.
[3] Livro I, item XI, “Do critério do ceticismo”.
[4] Passagem do Fedro, em que Sócrates diz não saber se é uma fera inchada de orgulho ou um animal mais sensível e pacífico.
[5] Em filosofia, “acidente” significa qualidade ou estado não essencial de algo. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o conceito de acidente se contrapõe ao conceito de substância.
[6] Em filosofia, processo mediante o qual algo se faz ou chega a ser.
[7] Versos do epitáfio da tumba do rei Midas. Também estão no Fedro de Platão.